Os trinta anos de um Movimento Juvenil
D. Zeno Hastenteufel
1. ANOS DE TRANSFORMAÇÕES
No início da década de sessenta, em Porto Alegre e em todo o Rio Grande do Sul, havia uma grande pastoral da juventude. Era o período áureo da Ação Católica Especializada.
É preciso recordar que a Ação Católica fora fundada na Europa, ainda antes da última guerra mundial, em cima do método “ver, julgar e agir”. Esta Ação Católica contemplava todos os segmentos da juventude. Assim existia a JAC (Juventude Agrária Católica), a JEC (Juventude Estudantil Católica), a JIC (Juventude Independente Católica), a JOC (Juventude Operária Católica) e a JUC (Juventude Universitária Católica).
Estabelecendo-se mais nas cidades maiores, a JEC realmente movimentava muito a juventude daquele tempo. Por volta de 1963, em Porto Alegre, fazíamos caminhadas e concentrações de 15 a 20 mil jovens.
Praticamente todos os colégios católicos de então tinham os seus núcleos de JEC. Até mesmo nos colégios públicos, como no Julinho, Protásio Alves, Parobé e Inácio Montanha, a JEC era expressiva e havia grupos de JEC em cada turno e coordenação própria em cada escola.
Veio a revolução de 1964, muitos líderes da Ação Católica se manifestaram contrários aos ideais daquele movimento revolucionário e foram enquadrados nos assim chamados “subversivos”, isto é, “perigosos” para o momento político que então se vivia.
Grandes líderes, jovens e padres, começaram a ser perseguidos, aprisionados e, segundo denúncias, foram até torturados. Alguns morreram, como Wladimir Herzog. É claro que todos os grupos da JEC, JOC e JUC começaram a se posicionar contra a revolução. Com isto a perseguição se tornou sempre mais forte e a espiritualidade foi diminuindo. Os antigos retiros foram substituídos por dias de encontro, debate político, estudo da realidade brasileira, contestação ao movimento revolucionário.
Por volta de 1968, com a edição do Ato Institucional nº 5, a Ação Católica foi colocada na parede: naqueles moldes ela não poderia continuar. Seria necessário transformar o espírito e voltar aos ideais originários. No Brasil, isto era impossível. Em outros países, como na Itália, na Espanha e na Argentina foi feita esta transformação e a Ação Católica sobreviveu.
No Brasil, os próprios Bispos acabaram por desestimular uma Ação Católica que tinha se voltado totalmente para o plano político e estava numa atitude de ostensiva contestação. Os grupos de JEC e JUC foram acabando, lamentavelmente. Tinham formado grandes lideranças e preparado muitos bons católicos, mas para eles não havia espaço no momento. Criou-se um momento triste para a Igreja do Brasil: os jovens simplesmente sumiram da Igreja.
Em 1973, como padre recém-ordenado, fui designado para trabalhar na Paróquia São Pedro, na área central de Porto Alegre. Havia um belíssimo trabalho de catequese, bons grupos de casais, um ativo Apostolado da Oração, mas na igreja não havia jovens. Até existia um grupo de jovens, chamado MEF (Movimento Estudantil Floresta), só que estes jovens não participavam da missa. A reunião deles era no horário da missa, domingo à noite. Reuniam-se nos fundos da paróquia, mas criticavam a Igreja e não participavam dos sacramentos.
Era um grupo que já não servia mais e que era impossível reformar. Aplicamos a técnica da eutanásia, isto é, fizemos o grupo morrer lentamente, sem dor.
Não havia mais nada. Os jovens estavam excluídos da pastoral e todos lamentavam a morte da antiga Ação Católica.
Em maio de 1973, veio uma pequena esperança para Porto Alegre. Graças à preocupação de nosso bispo auxiliar, Dom Antonio Cheuíche, e com a ajuda do Pe. Urbano Zilles, foi trazido de São Paulo o Movimento de Emaús.
Em julho, fui convidado a participar do 2º Emaús de Porto Alegre. Depois participei do 3º, do 4º e, em abril de 1974, fui Diretor Espiritual do 5º Emaús feminino de Porto Alegre. Em junho, daquele mesmo ano, coordenei o 1º Emaús de Florianópolis.
Criamos um grupo de padres que refletiam a realidade da juventude. Constatamos que os jovens eram bons, dóceis, com grande sede de Deus. Mas, vimos que, em muitos casos, o Emaús vinha um pouco tarde. Os jovens já estavam muito avançados e comprometidos, em droga, sexo e álcool. Em muitos casos, já era difícil uma recuperação total e não dependia mais deles uma atitude de mudança de vida.
2. COMO INICIOU O CLJ
Na igreja São Pedro, nós padres tínhamos um grupo de uns 60 crismandos. Era uma esperança para a Igreja. Eu como vigário e Mons. Atílio Fontana como pároco, pessoalmente preparamos bem os encontros de crisma. Os jovens estudavam as matérias, sabiam os textos, mas não havia forma de levá-los de volta à vivência cristã. Conheciam os conteúdos da fé, mas não eram capazes de transformá-los em vivência prática.
Em maio daquele ano de 1974, junto com a Ir. Jocélia Scherer3 e com alguns jovens do Emaús, começamos a preparar um “retiro de crismandos”. Colocamos algumas técnicas do Emaús, com músicas próprias, com monitores de grupos e a participação de um casal.
Nos dias 14 e 15 de julho de 1974, com 19 jovens, oito monitores, a Ir. Jocélia e um casal, nos dirigimos à Casa Medianeira para o “retiro de crismandos”. Seria um retiro centralizado na pessoa de Jesus Cristo: partindo da realidade do mundo, da realidade do jovem, apresentaríamos Jesus Cristo, com a sua Igreja e os seus sacramentos e, à luz desta verdade, entraríamos para a realidade da família e concluiríamos com a apresentação de um ideal jovem, num grupo paroquial.
Tínhamos alguns esquemas em uma pasta improvisada, um coordenador jovem, com vários bilhetes, mas sem um roteiro fixo e nem mesmo com horário claramente estabelecido. Tínhamos um objetivo claro: apresentar um Cristo capaz de fascinar os jovens e atraí-los para o seu caminho. (…) Todos estavam empolgados. Mas, os jovens queriam fazer novos retiros com esta mesma metodologia. Fizemos um trabalho em comunidades, com a pergunta: como é que vocês chamariam um tal retiro?
Entre muitas sugestões, apareceu uma: CLJ = Curso de Liderança Juvenil. Posto no quadro, junto com outras sugestões, foi feita a votação e não deu outra. Estava criado o CLJ.
2º CLJ |
Os jovens queriam logo fazer outro “retiro” destes, para os colegas da crisma que não tinham apostado no primeiro. Mas, foi então colocado, com muita clareza, que o segundo CLJ só seria feito em novembro se até lá todo o grupo perseverasse nas reuniões de todos os sábados, ocasião em que se faria a revisão de vida e o aprofundamento do estudo.
Foi uma beleza, todos os sábados estavam lá os 19 jovens, mais os monitores vindos do Emaús, o casal Raabe e Leda, mais a Ir. Jocélia. As reuniões eram no sábado de tarde. Havia uma parte da reunião em que se preparava a missa de domingo.
Com muito empenho, foi preparado o segundo CLJ, para os dias 13, 14 e 15 de novembro daquele mesmo ano de 1974. Já começaria na sexta-feira de noite. Já teríamos um livrinho de cantos, mais um casal, João e Célide Salvador, e iria um grupo maior.
3º CLJ |
Após várias e demoradas reuniões preparatórias, pois era necessário montar todos os esquemas de palestras e elaborar todas as intervenções do coordenador, definir as funções do casal e do folclore4. Enfim veio a data tão esperada.
Quando encostou o ônibus, lá nos fundos da igreja São Pedro, parecia início de uma revolução. Gente de todos os lados. Lá estavam os 55 jovens inscritos, com seus pais, familiares e um número incalculável de curiosos. Todos queriam saber o que estava acontecendo.
O segundo CLJ foi espetacular. Levávamos uma monitora, quase formada em Psicologia (Luiza Rizzo). Ela deveria (…) observar tudo o que estava acontecendo para ver se não estávamos contrariando o que ela aprendia na faculdade.
Foi um curso fora-de-série. No domingo à noite “chegada” na São Pedro. Foi feito no salão paroquial. Estava lotado. Todos os familiares daqueles 55 jovens, os colegas do primeiro e muitos curiosos.
E a continuidade foi melhor ainda. Muitos jovens já estavam em férias e começaram a vir à missa todos os dias. No domingo seguinte, nosso grupo estava assumindo oficialmente a missa das 11 horas. Era a missa dos “dorminhocos”. A maioria chegava atrasada. Mas, em pouco tempo, se tornou a grande missa da paróquia. Era a missa dos jovens. Os violões eram uma novidade na liturgia. Falava-se até em “Missa iê, iê, iê…”
86º CLJ |
A partir de então, os alunos dos colégios da redondeza começaram a se interessar. Naquele final de ano, os nossos jovens começaram a ir nas escolas e falar aos colegas jovens sobre a experiência vivida a partir de um encontro com Jesus Cristo. Era o assunto em todas as rodas e em todas as salas de aula.
Vieram aquelas férias e o grupo perseverando mesmo espalhados pelas praias do litoral norte. Faziam reuniões semanais em Tramandaí, em Capão da Canoa e em Atlântida. Não se perdeu ninguém naquelas férias. Todos voltaram em março, com mais entusiasmo ainda. Todos estavam esperando o terceiro CLJ, logo marcado para o mês de abril. A fama se espalhou pela cidade.
3. O CLJ – MOVIMENTO ARQUIDIOCEANO
O Pe. Severino Brum, pároco da Sagrada Família, na Cidade Baixa, que há anos estava tentando uma pastoral para os jovens, com iniciativas espetaculares, ficou sabendo e queria participar do terceiro CLJ. Queria apenas observar e levar um grupo de 20 jovens e um casal de tios.
Fizemos várias reuniões. Seria preciso falar com os bispos. Pe. Severino falou com Dom Antonio e eu fui falar com o nosso Arcebispo, o Cardeal Dom Vicente Scherer. O nosso querido Cardeal ficou um pouco assustado. Já tinha ouvido falar “nos abraços e beijos”, durante a missa. Era uma novidade radical em Porto Alegre. Mas, no final de nosso encontro, ele me falou: “Pe. Zeno, continue, neste trabalho, com a minha benção. Se este movimento vem de Deus, vai progredir e dele surgirão muitas vocações para o sacerdócio e a vida religiosa; se não vem de Deus, em pouco tempo vamos acabar com isto, antes que seja tarde”.
1º CLJ-I do Vicariato de Gravataí |
Após uma longa reunião com Dom Antonio, participando ainda o Pe. Severino, o casal José Carlos e Eunice Monteiro, Ir. Jocélia e três ou quatro jovens, o CLJ foi reconhecido como Movimento arquidiocesano, aberto para as paróquias que o quisessem implantar.
O CLJ seria agora um Movimento Diocesano. Era hora de organizar tudo, preparar as pastas, redigir os esquemas de palestras, montar o curso de dirigentes e oficializar toda a organização. Muito importante nesta hora foi o trabalho do jovem João Amâncio da Costa Filho que morava conosco na São Pedro.
Tínhamos uma certeza: o CLJ será um Curso de descobertas. Seria para jovens adolescentes que viviam a fase das grandes descobertas em suas vidas. (…)
[O] CLJ foi se firmando como “momento”, enquanto curso de apenas três dias, e como “movimento”, enquanto grupo fixo e estável, que vai trabalhando como pastoral de jovens, onde sempre estava presente a grande frase de Paulo VI: “É preciso que os jovens se tornem apóstolos de jovens”.
Em pouco tempo, o CLJ foi se espalhando pelas paróquias de Porto Alegre, depois foi para as dioceses do interior e hoje está espalhado por grande parte do Rio Grande do Sul e já recebendo pedidos para ser implantado em outros estados e até no Uruguai.
4. AS DIRETRIZES E BASES DO CLJ
Foi em 1976 que nós elaboramos a primeira edição das Diretrizes e Bases do CLJ. Foi um trabalho intensivo de um Secretariado Arquidiocesano, onde além dos padres estavam Samuel Zimmermann, Rubem Carlos Raabe e Eno Dias de Castro. Eram homens que tinham uma preocupação eclesial extraordinária. Queriam que o Movimento se firmasse, como movimento de Igreja, a serviço da pastoral da juventude.
Era regra básica que o CLJ só poderia ser introduzido numa diocese se o pedido partisse do Bispo e se ele colocasse um padre à disposição para acompanhar e ser o Diretor Espiritual Diocesano.
Estava muita clara a compreensão de que haveria o momento-CLJ (…) e o movimento-CLJ que era toda a fase da perseverança e toda a continuidade do trabalho, articulado em duas frentes. Era o binômio do CLJ, o centro de tudo o que acontecia na paróquia em que o CLJ estava implantado. Era a reunião de grupo e o trabalho dos departamentos.
A reunião de grupo seria o lugar da revisão de vida, com a folha de vivência, onde acontecia todo o aprofundamento da vivência cristã, em parte baseado no que se fazia antes na Ação Católica, com o ver, o julgar e o agir. O grupo era formado pelas jovens com uma tia e pelos jovens com um tio. Lá era o lugar onde os jovens poderiam abrir o coração, na certeza de que nada sairia do grupo. Usava-se a expressão: “estamos em reunião de grupo”, baseado nos cinco “S”: solidariedade, sinceridade, seriedade, sigilo e semanal.
Os departamentos eram o lugar da ação, onde os jovens deveriam atuar e prestar seu serviço ao grupo e à comunidade. O mais importante departamento era o litúrgico, ao qual cabia organizar a missa do final de semana, sempre o cartão de visita do grupo. Outro era o departamento de folclore, outro o cultural, outro era o departamento de promoção humana, o departamento de pré (que preparava os candidatos para o próximo curso) e o departamento de pós (ao qual cabia organizar os encontros dos sábados à tarde). Os departamentos podiam ser criados, segundo as necessidades locais. Havia paróquias em que funcionava muito o Departamento de Teatro, com belíssimas encenações.
Era regra que o coordenador do Secretariado Diocesano ou Paroquial fosse sempre um jovem. Mas, o órgão máximo de decisões estava sempre no Conselho de Padres, dos quais dependiam todas as importantes alterações a serem introduzidas no momento ou no movimento CLJ.
Na primeira edição, as Diretrizes e Bases falavam ainda no Curso de Dirigentes, que todo o jovem deveria fazer depois de um ano de perseverança (…). Ainda de acordo com esta primeira edição das Diretrizes, os jovens que ainda não tinham feito o CLJ eram convidados apenas para a missa do final de semana e para as Serenatas das quartas-feiras. O sábado de tarde era exclusivo para os jovens que já tinham vivido a experiência do CLJ-Momento.
5. A REFORMULAÇÃO DAS DIRETRIZES E BASES
Foi em 1985, na minha volta da Europa, o CLJ estava realizando 10 a 12 cursos por ano, em Porto Alegre, e já com secretariado próprio em Novo Hamburgo e em Uruguaiana.
Mas, havia pouca gente refletindo sobre este crescimento e sobre a perseverança desta juventude. Havia sérios problemas com os jovens mais antigos do CLJ, alguns já formados naUniversidade, que continuavam nos grupos paroquiais, não dando muita chance para o surgimento de novas lideranças.
Foi então necessário formar um grupo de reflexão e realizar uma reformulação nas Diretrizes e Bases do CLJ. Toda a reflexão começou com um grupo de jovens, mais adultos e um casal de tios. Nossas idéias foram levadas ao Secretariado Arquidiocesano e depois introduzidos nos grupos paroquiais.
A principal modificação introduzida foi a criação do CLJ1, CLJ2 e o CLJ3.
(…). Pensávamos preparar os jovens para os desafios da Universidade. Eles deveriam estar prontos para poder rebater os argumentos apresentados contra a Igreja e os seus ensinamentos.
6. O CLJ HOJE
Em nossas dioceses, já temos vários sacerdotes provenientes das fileiras do CLJ e nos seminários temos ainda grandes esperanças de vocações, nascidas em nosso meio.
Em cada diocese, o CLJ tem as suas características peculiares, de acordo com a realidade local. Mas, no essencial, o CLJ é o mesmo, em todos os recantos deste Rio Grande, até mesmo nas suas dificuldades de adaptação à pastoral da juventude9 e às canções litúrgicas que as comunidades cantam. No entanto, o que foi assumido há quase trinta anos, como Hino do CLJ, se concretiza em toda a parte: “Unidos estamos aqui, unidos queremos ficar… é bela a vida que se dá… É preciso que o mundo seja um pouco melhor porque nele eu vivi e por ele tu passastes meu irmão”.
O certo é que o CLJ até hoje só nos deu alegrias e está implantado como uma grande esperança para a Igreja. É claro que há padres e bispos mais empolgados e outros menos empolgados com o CLJ, mas uma coisa é certa: “Nas paróquias onde está o CLJ, lá atuam jovens e mais jovens… e lá onde não está o CLJ, há uma enorme carência de jovens na Igreja e na participação da liturgia e no canto”.
(…) Para que o grupo não se feche, há uma única solução: fazer o grupo trabalhar. Organizar encontros e encontrões, retiros e programas com outros grupos, organizando encontrões de área ou encontrões diocesanos. Enquanto o grupo todo estiver envolvido, com trabalhos e tarefas, é certo que o grupo cresce e as lideranças se fortalecem.
Artigo publicado em Caminhando com o Itepa, Instituto de Teologia e Pastoral, Ano XXIII, no. 85, julho 2007, p.46-54